Projeto de ruralistas propõe pagar trabalhador rural com casa e comida
9 de maio de 2017Um projeto do presidente da bancada ruralista na Câmara Federal, deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), prevê que o trabalhador rural brasileiro possa ser pago com comida ou casa. É isso mesmo. E vai além. O texto prevê jornada de até 12 horas (por motivos de “força maior”) e 18 dias consecutivos, além da venda integral das férias dos empregados que moram no local de trabalho.
“As leis brasileiras e, principalmente, os regulamentos expedidos por órgãos como o Ministério do Trabalho são elaborados com fundamento nos conhecimentos adquiridos no meio urbano, desprezando usos, costumes e a cultura do campo”, justifica o deputado, para quem o trabalhador rural deve ser condicionado à cultura da semiescravidão e a costumes medievais.
Segundo a Contag (Confederação Nacional de Trabalhadores Rurais) e a Contar (Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados Rurais), no campo, muitas vezes a remuneração ocorre com parte da produção ou cessão de pedaços de terra para que o empregado possa produzir. “Há um imenso risco de regularizar esta modalidade ou outras, como em troca de moradia e alimentação”, dizem representantes de ambas as Confederações.
O texto cria regras para limitar esta possibilidade, como dizer que a cessão de moradia para o empregado não integra o salário e que será descontado no máximo 20% do salário mínimo por moradia e 25% pela alimentação. Mas, para as entidades, a liberação de uma remuneração “de qualquer espécie” abre brecha para a ampliação deste tipo de pagamento.
Projeto enfraquece os mecanismos de defesa do trabalhador rural
O projeto de Leitão também revoga a norma do Ministério do Trabalho sobre as regras de segurança e saúde no campo (NR-31) e define regras genéricas e que retrocedem à atual regulamentação. Acabam, por exemplo, com a obrigação de que a empresa mantenha equipamentos de primeiros socorros no local e com o exame demissional caso o funcionário tenha realizado exame médico ocupacional ou perícia no INSS nos últimos 90 dias.
Também deixa exclusivamente com o Ministério da Agricultura a fixação de regras sobre a manipulação de agrotóxicos, excluindo os ministérios da Saúde e do Trabalho, acaba com a obrigação de descontaminar os equipamentos de segurança ao fim de cada jornada e permite que maiores de 60 anos utilizem os chamados defensivos agrícolas.
O texto autoriza que, sempre que a jornada normal for interrompida por “motivo de força maior ou resultante de causas acidentais” –com uma máquina quebrada–, o trabalhador poderá ser obrigado a trabalhar até quatro horas a mais para “recuperação do tempo perdido”. Essas horas extras serão devolvidas em até um ano como folga ou pagamento. A jornada também poderá ser ampliada para até 12 horas diárias, mesmo sem interrupção, por “motivo de força maior, causas acidentais ou ainda para atender a realização ou conclusão de serviços inadiáveis”. O trabalho aos domingos e feriados, hoje limitado a laudos técnicos que indiquem a necessidade de execução de serviços nesses dias, também estará liberado.
A empresa só terá de disponibilizar infraestrutura adequada nas chamadas frentes de trabalho (áreas de trabalho móveis e temporárias), como banheiro e espaço para alimentação, quando atuarem mais de 20 empregados.
O que os deputados federais de Mato Grosso do Sul pensam do projeto
“É um retrocesso, um desrespeito com o ser humano. Querem submeter o trabalhador rural a um formato de exploração semelhante ao trabalho escravo. É por esse tipo de exagero e retrocesso que lutamos contra a reforma trabalhista, porque agora abriu-se precedente para todo o tipo de absurdo. Perderam a vergonha para tentar acabar de vez com os direitos trabalhistas. Isso vai contra tudo o que os trabalhadores e as pessoas que buscam justiça, igualdade e dignidade lutaram para conquistar durante décadas”, afirma o deputado federal Vander Loubet (PT).
Seu colega de partido, o deputado Zeca do PT, disse que se nega a acreditar que um deputado tenha coragem de apresentar semelhante projeto em pleno século 21. “É inacreditável que a elite brasileira e o agronegócio peçam aval do governo para uma proposta destas. É inacreditável que eles proponham que o trabalhador rural trabalhe em troca de casa e comida. É uma vergonha, perderam a noção”.
O pedetista Dagoberto Nogueira, na mesma linha, disse que este tipo de projeto é fruto do Congresso mais conservador de toda a história do país. “A extrema-direita apresenta esses retrocessos absurdos. Estão querendo voltar ao tempo da senzala ao propor a troca de salário por moradia e alimentação. Esse tipo de proposta não é boa nem para a classe empresarial. Os patrões inteligentes já sabem que um funcionário realizado rende muito mais. Por isso ele garante jornadas razoáveis, transporte, alimentação. Estamos falando de um capitalismo menos selvagem. Essas propostas não podem avançar”. Para Geraldo Resende (PSDB), a proposta é insustentável. “É uma iniciativa individual do parlamentar. Pelo que eu vi até agora, ela não passa. Não tem sustentação”, afirmou.
O deputado Luiz Henrique Mandeta (DEM) disse que não compactua com alternativas ao pagamento salarial, mas ressaltou alguns pontos do projeto de Leitão. “Acho que as férias poderiam seguir o rito do parcelamento, conforme a regra urbana. A intermitência precisa ser regulamentada, pois o campo usa muita mão de obra temporária, e não há segurança jurídica para estas contratações. A estrutura móvel pode ser arbitrada para um número mínimo de funcionários. As regras de segurança também precisam ser especificadas em lei, o vácuo atual permite qualquer interpretação. É o início de uma discussão, da qual vou participar ativamente”, avisou.
Tereza Cristina (PSB), por sua vez, diz que o setor rural tem especificidades. “Tem trabalhador rural que prefere começar a trabalhar de madrugada e terminar mais cedo por conta do calor, por exemplo. Para esse tipo de jornada, não existe uma regulamentação. De todo modo, depois da aprovação da reforma trabalhista geral, teremos de atualizar as regras rurais. Não li o projeto do Leitão, mas é certo que muita coisa precisa mudar”, opinou.
Quem é Nilson Leitão e qual seu interesse sobre o trabalhador rural?
O deputado Nilson Leitão é conhecido como um dos principais porta-vozes dos ruralistas no Congresso. No ano passado, foi um dos autores do pedido de criação da CPI da Funai, comissão que relatou. Também foi o presidente da comissão especial que aprovou a proposta de emenda Constitucional (PEC 215) que transfere, do Executivo para o Legislativo, a palavra final sobre o reconhecimento das terras indígenas.
Ele angariou R$ 1,43 milhão do setor agropecuário dos R$ 2,46 milhões investidos em sua campanha. Ele é investigado no STF (Supremo Tribunal Federal) por suspeita de envolvimento com uma quadrilha acusada de invadir reiteradamente a terra indígena Marãiwatsédé, em Mato Grosso.
As modificações propostas em seu projeto ficaram de fora do parecer do deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), relator da reforma trabalhista, por um acordo da bancada ruralista com o governo. Mas agora, a bancada se movimenta para alterar as leis que tratam da proteção dos direitos do trabalhador rural. A intenção é restringir o poder da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho e alterar normas para permitir, por exemplo, que o empregador deixe de pagar salário ao empregado do campo.
Agora, o projeto de Leitão será debatido numa comissão especial da Câmara que deve ser instalada nas próximas semanas–apenas a oposição não indicou os integrantes. Na justificativa do projeto, o tucano espera que as alterações vão modernizar a relação no campo com aumento dos lucros, redução de custos e geração de novos postos de trabalho.
Em nota, FPA diz que projeto não mexe no salário do trabalho rural
Em nota oficial, a FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária) garante que o projeto de lei 6442/2016 –do presidente da bancada ruralista na Câmara Federal, deputado Nilson Leitão (PSDB-MT)– não levanta a hipótese de diminuir o salário do trabalhador rural em troca de casa e comida. Ao contrário, diz a nota, o que o projeto prevê são acréscimos beneficiando o trabalhador por conta de acordos previamente firmados.
“Não se mexe no salário. Ele é sagrado. O texto do projeto em nenhum momento prevê a possibilidade de o trabalhador passar a ser remunerado tão somente com o fornecimento de sua habitação e alimentação necessária à sua sobrevivência. Tal possibilidade é fantasiosa”, afirma a FPA.
Segundo a Frente, o § 4º, do art. 16 diz que “a cessão pelo empregador, de moradia e de sua infraestrutura básica, assim como, bens destinados à produção para sua subsistência e de sua família, não integram o salário do trabalhador”. Sobre a jornada de 12 horas diárias, a FPA afirma que o art. 6º afirma que: “A duração do trabalho normal não será superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais”.
Sobre o trabalho contínuo, conforme consta do projeto, a FPA sustenta que o seu objetivo é possibilitar melhor convívio familiar e social. “O trabalhador rural que desenvolva sua atividade laboral em local distante de sua residência poderá, mediante solicitação e sujeito à concordância do empregador, usufruir dos descansos semanais remunerados em uma única vez, desde que o período trabalhado consecutivamente não ultrapasse 18 (dezoito) dias. Observe-se que não há supressão alguma do direito atualmente existente, o texto apenas permite que o trabalhador escolha a forma como prefere gozá-lo”.
Ainda assim, afirma a Frente, o mecanismo não se trata de uma premissa impositiva do empregador, mas sim de um benefício que pode estar amparado pela legislação, e só pode ser exercido desde que seja requerido pelo trabalhador, que muitas vezes perde muito tempo –chegando a dias em alguns casos– no deslocamento até sua residência. “Hoje, no meio urbano, essa hipótese é socialmente aceita, basta ver o caso dos trabalhadores em plataformas petrolíferas, cruzeiros marítimos, dentre outros”, afirma a nota.
Nossa reportagem procurou insistentemente o deputado Nilson Leitão, para que ele explicasse em detalhes o teor de seu projeto. No entanto, até o fechamento da edição, ele não foi localizado para tecer comentários.
O Estado Online