Clássico de Gabriel García Márquez, “Cem Anos de Solidão” faz meio século
9 de maio de 2017Quando o jovem Gabriel García Márquez (1927-2014) ia à livraria Nacional, uma de suas preferidas de Barranquilla, cidade da costa colombiana onde morou um tempo, voltava carregado de títulos de seus autores favoritos, como William Faulkner, Albert Camus e Franz Kafka.
Todos tinham algo em comum: eram traduzidos e lançados em Buenos Aires, então principal centro editorial da América Hispânica.
“Aqui estavam a Emecé, a Losada e a Sudamericana, que editavam escritores da região, além de traduzir autores clássicos internacionais para o espanhol para a América Latina”, conta à Folha Ezequiel Martínez, filho do escritor argentino Tomás Eloy Martínez (1934-2010), hoje diretor cultural da Biblioteca Nacional de Buenos Aires.
Junto a outras instituições culturais portenhas, a BN abrigará as comemorações oficiais do 50º aniversário de “Cem Anos de Solidão”.
A saga, que se tornaria a mais conhecida do Nobel colombiano e um marco do realismo mágico, chegou às livrarias pela primeira vez em Buenos Aires, em maio de 1967, pela Sudamericana.
A primeira edição, com 8.000 cópias, esgotou-se rapidamente, e esse sucesso fez com que o escritor ganhasse projeção internacional.
“Gabo tinha ficado muito frustrado porque seu primeiro romance, ‘La Hojarasca’ [‘A Revoada’ (O Enterro do Diabo), 1955], fora recusado pela Losada. Teve de se resignar a publicar por um selo mexicano, mas dizia sempre que seu sonho era sair por uma editora argentina, pois isso lhe abriria as portas para o mundo”, diz o colombiano Jaime Abello Banfi, diretor da Fundación Nuevo Periodismo e amigo do escritor.
Gabo já vivia no México em 1965, quando começou a escrever “Cem Anos de Solidão”.
Estava tão convencido de que o livro seria um grande sucesso que entregou os últimos US$ 1.500 que havia recebido por um trabalho à mulher, Mercedes Barcha, e pediu que ela se virasse com aquele dinheiro para sustentar a família até que ele terminasse o romance. Disse que precisava só de 6 meses, mas acabou levando 18 até colocar o ponto final na obra.
Mercedes contraiu dívidas, pediu ajuda a amigos e, quase um ano depois, convenceu o dono do apartamento em que viviam no bairro de San Ángel, na Cidade do México, que ao fim de mais seis meses pagariam a imensa dívida de aluguel que tinham acumulado, mesmo sem ter ideia de onde sairia o dinheiro.
Até que o escritor recebeu, em 1966, a visita do crítico chileno Luis Harss, que então trabalhava num mapeamento da nova literatura da região.
Sem saber, Harss estava fazendo o que hoje é visto como o primeiro retrato do “boom latino-americano”. O resultado acabou sendo um clássico da crítica literária regional, “Los Nuestros” (Alfaguara), que reunia perfis de Gabo, Jorge Luis Borges, Juan Carlos Onetti e Vargas Llosa, entre outros.
Pois foi Harss que, numa visita a Buenos Aires, recomendou que o editor Francisco Porrúa, da Sudamericana, prestasse atenção naquele colombiano de Aracataca.
Porrúa escreveu, então, uma carta a Gabo, dizendo que gostaria de publicar um livro seu. O escritor se surpreendeu com o repentino interesse, mas disse que, infelizmente, não teria como tirar os títulos anteriores do controle do selo mexicano que os havia publicado.
Mencionou, porém, que estava trabalhando num novo livro. Porrúa disse que o esperaria, e enviou US$ 500 como adiantamento.
“Esse dinheiro como que caiu do céu, porque sanou todas as dívidas que Mercedes já não sabia mais como driblar”, conta Abello Banfi.
No dia de enviar a obra pelo correio, o casal topou com outra dificuldade: o que tinham no bolso não alcançava para mandar as 590 folhas datilografadas. Gabo não se alterou; dividiu o original em duas partes e mandou só uma, na esperança de conseguir um empréstimo nos dias seguintes. “A única coisa que falta agora é que o romance seja ruim”, disse Mercedes a Gabo.
Não era. Em Buenos Aires, ao ler a metade enviada, Porrúa ficou animadíssimo. Enviou dinheiro para que a outra parte viesse logo e telefonou animado para Tomás Eloy Martínez. Pediu que o escritor fosse imediatamente à sua casa, em San Telmo, para escutá-lo lendo a obra de um autor que, segundo suas palavras, tinha escrito algo “tão delirante” que ele não sabia se o sujeito era “um gênio” ou “totalmente louco”.
Porrúa recitava o romance em voz alta e atirava os manuscritos para cima. Como havia chovido, eles se molhavam, mas o editor seguia lendo e caminhando sobre eles. “A primeira edição de ‘Cem Anos de Solidão’ é a que se pode identificar porque leva a marca da sola do sapato de Porrúa”, costumava dizer Tomás Eloy aos amigos.
Reunidas ambas as partes, o livro foi para a gráfica. “Quando recebeu a primeira cópia, lá no México, Gabo entregou-a a Mercedes e se deitou ao lado dela para vê-la lendo”, conta escritor porto-riquenho, Héctor Feliciano, amigo do casal.
O GRANDE ROMANCE
DA AMÉRICA
Editor da revista “Primeira Plana”, Tomás Eloy dedicou, então, uma capa da publicação para “Cem Anos de Solidão”. Nela vemos a imagem de um Gabo com cara de assustado, aos 40, magro, mal vestido, e o título: “O Grande Romance da América”.
Vendo que o livro se esgotava rapidamente das prateleiras, a Sudamericana convidou o escritor para ir a Buenos Aires, a fim de ampliar a promoção do romance.
Foi assim que, numa madrugada fria de agosto daquele ano, Gabo e Mercedes desembarcaram na cidade, pedindo para comer um famoso “bife de chorizo” local.
Porrúa e Tomás Eloy, que os receberam no aeroporto, se desesperaram, pois já passava das 3 da manhã. No fim, encontraram um lugar aberto, na avenida Costanera, onde Gabo teria comido e entretido os garçons contando histórias do Caribe.
“Ninguém deu bola para eles nos primeiros dias, passaram despercebidos. Caminharam pela avenida Santa Fe, foram aos parques; mas logo a presença do autor começou a causar burburinho”, conta Ezequiel Martínez.
Afinal, enquanto Gabo passeava entretido com as atrações da capital argentina, a propaganda e o boca a boca levaram “Cem Anos de Solidão” ao topo da lista dos livros mais vendidos no país.
Mercedes acompanhou Gabo nos primeiros eventos, mas logo trancou-se no quarto do modesto hotel da calle Arenales pois disse que já não tinha mais roupas para usar.
Gabo pediu, então, um adiantamento pela venda da segunda edição do livro, com um detalhe: queria tudo em notas pequenas.
Quando o dinheiro chegou a suas mãos em duas maletas, espalhou-o pelo quarto e colocou o resto numa bandeja, dizendo a Mercedes que ela poderia “comprar as roupas que quisesse”, segundo ela mesma contaria depois.
Numa das últimas noites, o casal foi convidado a ver uma peça de teatro da dramaturga argentina Griselda Gambaro. Entraram discretamente, com as luzes já apagadas, mas logo alguém o identificou e gritou: “Obrigado, García Márquez”.
As pessoas então se levantaram e o saudaram com uma ruidosa salva de palmas. “Já no dia seguinte, ele não podia mais andar na rua sem que o rodeassem para pedir autógrafos”, conta Abello Banfi.
Gabo depois repetiria diversas vezes que Buenos Aires tinha sido o começo de tudo. Estranhamente, porém, jamais voltou a aceitar um convite para visitar a cidade.
Tomás Eloy estava seguro de que era por seu caráter tão supersticioso. “Ele achava que, se aqui tinha começado tudo, aqui poderia também terminar tudo”, conta Ezequiel. Abello Banfi confirma.
“Gabo era muito supersticioso. É bastante possível que não tenha querido jamais pisar em Buenos Aires por acreditar que a mágica de seu sucesso, assim como se fez, poderia se desfazer aqui.”
Folhapress